evig: (estrada)
Juliet ([personal profile] evig) wrote in [community profile] contemspoiler2019-01-04 06:33 pm

Black Mirror: Bandersnatch, de David Slade

Eu não sou fã de visual novels, e li apenas um livro-jogo bem ruinzinho. A lógica de procurar um final feliz me incomoda, e eu até tenho nas minhas notas de coisas para “tentar escrever antes de morrer” um livro-jogo em que o crescimento emocional do protagonista é mais importante que as peripécias ou o final (seria uma espécie de romance de formação para adolescentes). Black Mirror: Bandersnatch é muito mais interessante porque amarra a noção de livre-arbítrio no tema e na forma. O final feliz aqui não importa, na verdade, nem o “melhor” final importa tanto. Jonathan Tadeu disse num tweet que o filme nos dá a impressão de que comandamos o filme, mas é ele quem nos comanda e eu tive exatamente essa impressão junto com uma outra que vou expor mais pra frente.

Logo na opção em que decidimos se Stefan aceita o emprego, eu e meu irmão (portanto dividimos as decisões) optamos pelo caminho óbvio. O filme nos recompensa com um percurso de fracasso e ao final, podemos voltar e “morder a isca” que Colin nos lançou ao dizer “opção errada”. A narrativa volta, Stefan e Colin percebem coisas que eles não sabiam da vez anterior, como se percebessem que estão vivendo aquilo de novo, mas sem realmente saber. Na opção do emprego então, a escolha óbvia seria dizer “não” mas meu irmão optou pelo “sim” novamente. O filme parou numa tela com duas televisões e perguntou se queríamos voltar, a única opção era o “sim”. Aqui já entendemos o que o Jonathan escreveu no tweet. Não tínhamos controle sobre o filme, só uma ilusão. Ele estava nos dizendo o que escolher. Esse raciocínio é corroborado depois, num segundo final (mais satisfatório que o primeiro que tentamos) onde o jogo Bandersnatch funciona melhor porque as opções foram reduzidas, ainda possibilitando que o jogador tivesse a sensação de livre-arbítrio.

A segunda linha de raciocínio que o filme me suscitou foi a recompensa narrativa. Existe a recompensa nas referências aos episódios da série, uma espécie de presente para os fãs. Mas há uma recompensa narrativa para quem escolhe as opções mais ousadas. No primeiro percurso que fizemos, há uma opção em que o Stefan pode tomar ou não os remédios. A opção esperada é que ele não tome. Embora essa seja a opção ousada, toda narrativa com personagem traumatizado e pressionado psicologicamente tem um clichê de ser medicado e de não tomar os remédios em algum momento da narrativa ( estou especificando um clichê narrativo, não vou entrar na questão da atuação real de pessoas que tomam remédios para psicopatologia ou transtornos psicológicos). Isso porque existe um imaginário de que quem precisa tomar esse tipo de remédio, se não tomar, vai ficar mais propenso ao estresse, e por fim, vai ficar violento. Tanto que as opções seguintes tem caráter violento, o que deixa a narrativa mais empolgante e consequentemente recompensa o espectador. Mas nesse mesmo percurso, depois do meu irmão optar pela morte do pai de Stefan, ele optou pelo enterro do corpo, opção menos ousada. E logo depois, Colin aparece na casa. Stefan está com uma faca e podemos escolher se ele mata ou não Colin. Optamos por não matá-lo (gostamos do Colin, rs). Aí que o próprio Colin nos diz que foi uma opção anticlimática. Temos um final mais insosso e logo o filme nos apresenta a opção de voltar para o momento onde temos que escolher se Stefan enterra ou corta o pai em pedaços. Optamos então pela opção ousada e fomos recompensados com um final digno da série, com cenas entre os créditos e tudo mais. É nesse percurso que Stefan melhora o jogo eliminando percursos, mas como ele mesmo diz, mantendo a ilusão do livre-arbítrio. Não só nós somos recompensados por uma narrativa melhor, mas o próprio personagem é recompensado parcialmente por ter sido cruel e “louco”, seu jogo foi um sucesso.
Esse raciocínio da recompensa aprofunda o primeiro e principal tema do filme, a ilusão do livre-arbítrio, e como o Jonathan disse, é o filme que nos comanda. Ele nos deixa pistas para soluções que ele quer que escolhamos e caso o espectador morda a isca, somos recompensados narrativamente. Caso escolhamos “errado”, somos “obrigados” a voltar e tentar um percurso mais satisfatório. Não creio que a questão seja uma recompensa pela crueldade. A crueldade aqui entra como isca, os criadores conhecem seu público, sabem quais as opções que provavelmente os espectadores vão escolher.

Uma outra questão que o filme suscita é a propagação da obra além dela. O filme é uma obra em aberto (com finais limitados, mas ainda sim com possibilidades em aberto), com múltiplos finais, o que, naturalmente, faz com que os espectadores falem sobre seus percursos. Isso pra gente parece natural, falar sobre obras com outros fã na internet é parte da cultura pop. Mas aqui parece algo também suscitado pelo filme. O livro-jogo, que dá origem ao jogo de computador, que, na nossa segundo percurso, gera o filme, que por sua vez é o filme que estamos vendo. É o que podemos chamar de “obra infinita” que Borges trata em sua obra. Os críticos lêem esse aspecto como uma metáfora para a leitura, leituras no sentido de que cada um tem uma interpretação, uma obra nunca se esgota. Os leitores nunca são totalmente passivos, e a não-passividade num livro, jogo, ou filme nos coloca ativamente nas escolhas de interpretação. O filme me parece incentivar a “real” não-passividade perante a obra, que é esse movimento de falar sobre a obra, sobre os percursos e tal. Mas isso também tem um outro lado, uma espécie de marketing pesado e horas a mais de Netflix para passar por todos os percursos, que é, no fim, a discussão que Black Mirror trata: repensar nossa relação com as tecnologias. Por que eu preciso passar todas essas horas pra conhecer todos os percursos? Por que é normal passar oito horas maratonando séries ao mesmo tempo que não consigo ver um filme de 2h? Por que os algoritmos da Netflix monitoram as horas que eu passo maratonando e quantas vezes eu vi o mesmo filme? E etc.

O filmow não pode ser um termômetro, mas eu fui dar uma olhada nos comentários e muita gente reclamou do roteiro, o que é estranho, já que o espectador decide os percursos. Alguns falaram que o filme vale só pela inovação da interatividade, e uns poucos disseram entender o plot geral depois da terceiro ou quarto percurso. Ao meu ver, Black Mirror: Bandersnatch pode não ser a obra mais sutil sobre interatividade, mas mobilizou o espectador exatamente onde ele queria.

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