evig: (7 - livros)
Juliet ([personal profile] evig) wrote in [community profile] contemspoiler2016-01-12 02:02 pm

Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera

Praticamente depois de um ano sem ler algo contemporâneo, Barba Ensopada de Sangue se iniciou cheio de expectativas, mas ao término da leitura, se mostrou um livro equivocado perante o que promete.

Enquanto eu estava entre a primeira e segunda parte, pensei em escrever algo relacionado sua forma, especialmente ao modo narrativo cinematográfico, conhecido como modo câmera1. Mas acho que ficaria muito acadêmico e Barba não é bem um grande exemplo brasileiro de narrativa em modo câmera (infelizmente, não sei dizer qual seria um bom exemplo). Essa minha sensação não desmerece o ótimo trabalho formal do livro. Quem não está acostumado à narrativa em modo câmera pode estranhar no início, mas logo vai conceber as imagens exatamente como uma câmera. Barba seria um ótimo filme indie, com suas lindas paisagens e planos abertos. O problema ficaria com o ator principal. Mas vou falar do protagonista mais  frente.

O romance  dividido em três partes, que não se justificam muito bem. E existe uma espécie de apêndice no final de alguns capítulos que são interessantes porque dá ao leitor um panorama sobre o protagonista, e que acabam resolvendo as lacunas deixadas pelo distanciamento da narrativa. (Há sim alguns momentos de incursão nos pensamentos do protagonista, mas eles ainda parecem distantes) De todo modo, alguns desses apêndices mostram opiniões de moradores sobre o protagonista (não fica claro, mas eu na minha desatenção precisei voltar à eles quando terminei o livro para ter certeza do que se tratava e de quem era o foco narrativo/voz narrativa). No e-book, há um hiperlink, o que ajuda a verificar o assunto ou de quem é a mensagem (há mensagens da mãe, de uma ex-namorada, um sonho da mãe de uma outra namorada, depoimento do chefe que é de anos a frente da narrativa); não sei como resolveram isso no papel impresso, mas tem momentos confusos, como o relato de um mural onde "as meninas penduram coisas que fazem lembrar do motivo por que elas estão trabalhando naquele lugar." e você se pergunta qual a relação daquilo pra história.

A linguagem é coloquial, o que eu aprecio bastante, e não há indicação de diálogo, que foi o que mais gostei, dá uma fluidez cinematográfica entre as sequências das cenas no qual dificilmente o leitor não vai criar o seu próprio filme na cabeça. (Sim, eu sei que a grandessíssima maioria dos leitores faz isso, justamente porque vivemos em tempos onde as mídias cinematogrficas dominam, mas quero deixar claro o quão ostensivo é esse aspecto no livro.)

Entrando no nível narrativo, e também em certos aspectos de marketing, o título e a sinopse particularmente me venderam uma ideia de livro mais brutal, focado no plot que se dizia tratar da investigação de um sujeito sobre a misteriosa morte de seu avô na tal cidadezinha costeira de Garopaba, obviamente se espera também subplot sobre o protagonista e a ambientação da cidade que faria papel de personagem também, já que o protagonista se muda para lá fora da temporada de férias. Devo dizer que dessas premissas, o livro só cumpriu com a personificação da cidade, que possui moradores bem estranhos que não falam sobre o assunto e deixam claro que não gostam do protagonista. Um gancho de mistério, mas que vai se arrastando até o final da segunda metade do livro. Enquanto isso você conhece a geografia da cidade, como o protogonista se acomoda nela, e até entende o porquê do autor ter escolhido o modo câmera pra narrar a história (o protagonista não retém rostos, então precisa se ater a outros detalhes para reconhecer as pessoas). Quando o leitor descobre o que aconteceu com o avô na cidade e seus desdobramentos, parece algo bobo se for levado em consideração a atitude dos moradores, ou talvez a sensação de ter sido enganada me tirou o prazer da descoberta. O clímax mesmo nem é esse, é uma briga com um sujeito que apareceu no início da narrativa (que o leitor, nem o protagonista se lembram) por causa da cadela de estimação do protagonista; uma cena que nem chega a ser comovente porque como eu disse, o modo câmera mantém uma distância, então mesmo você sabendo que a cadela é possivelmente o ser vivo mais importante pro protagonista, você não sente que ela é importante. O ator do meu filme teria que ser muito bom para dar peso dramático a essa cena.

No capítulo final, há um diálogo sobre livre-arbítrio e determinismo e o leitor entende que o livro é sobre a construção do protagonista como mito local dessa cidade, assim como é seu avô, e demostra isso como destino, em meio à outros questionamentos budistas/transcendentais que aparecem no livro, mas que parecem sem importância. Não é uma surpresa que me agrada saber que fui fisgada pela promessa de um bom livro de plot por um livro sério morno (não diria frio, porque talvez isso desse um tapa na cara do leitor ou o deixasse desconfortável e isso é sempre bom). É aqui que entro no aspecto do marketing: fazer com que o livro seja atraente para o grande (mesmo que no tão grande) público leitor se utilizando de um título apelativo que remete  um momento do clímax, mas que não representa o livro como um todo pode se passar por uma alternativa criativa, porém me soa desonesto tanto quanto se utilizar do subplot, mesmo que seja espinhal, como chamariz de uma história de personagem. Sei bem que existem milhares de livros bem piores que este que se utilizam de artifícios ainda mais desonestos. O que me incomoda é que o livro é sério. Mesmo que seja mediano, quando você assume a seriedade com que conta uma trajetória, se espera seriedade com o todo. Mas talvez esse fosse o intuito do autor desde o início pra chamar leitores estritos de entreterimento ao mundo das trajetórias de personagens realistas com questionamento sério. Gostaria de saber as impressões de quem sentiu a surpresa e como a encarou, já que o livro só me cativou na parte formal.

 
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Nota 1: Ligia Chiappini Moraes Leite diz em O foco narrativo (ou A polêmica em torno da iluso) que esse tipo de narrativa "tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. (...) A câmara não é neutra. No cinema não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, existe algum por trás dela que seleciona e combina, pela montagem, as imagens a mostrar. E, também, através da câmera cinematográfica, podemos ter um ponto de vista onisciente, dominando tudo, ou o ponto de vista centrado numa ou várias personagens. O que pode acontecer é que se queira dar a impressão de neutralidade."